O luto
por VasqsA cidade amanheceu consternada com a morte de um homem
Era 1963, novembro, a cidade amanheceu consternada com a morte de um homem, no dia anterior, 22, assassinado a tiros quando passava por uma avenida num carro aberto.
Não era o prefeito, o morto, e nem o juiz e nem o bispo. Não era o cidadão mais respeitado, nem um craque do nosso futebol - e tínhamos vários naquela época! Não era, aliás, ninguém da nossa cidade e nem de qualquer outra por perto.
Jamais nos visitou, nunca comeu no Petisco, nunca comprou óleo de algodão na Columbia ou tomou banana split na lanchonete Paraíso. Não conhecia o prefeito nem o prefeito conhecia ele. Não conhecia o Otávio, nem o Silveirinha, seus, da cidade, maiores artistas.
E nem era do Brasil, o homem, e nem falar português ele sabia, mesmo quando vivo.
Não, o morto tinha sido morto a 9 mil quilômetros dali!
Então por que diabos a cidade estava triste?
Vai saber, acontece que estava. Todos de luto e cabisbaixos, sob uma atmosfera densa e acinzentada - novembro sempre chove - com a morte de um homem desconhecido,a 9 mil quilômetros dali.
A cidade, incluindo o prefeito, sofreu e enlutou-se com sua, do morto, tragédia. E parou pra assistir o cortejo fúnebre - o pranto da viúva, a tristeza dos filhos, agora órfãos, pobrezinhos - transmitido direto pela primeira vez na TV, mesmo em preto e branco, mesmo com chuviscos.
Tia Neca, transida, rezava baixinho; a mãe debulhava uma lágrima; eu não entendia nada e meu pai, face petrificada, soltou um palavrão:
- Filho da puta!
E fomos todos dormir com a dor deles, a 9 mil quilômetros dali!, pesando no nosso peito.
John Fitzgerald Kennedy, assim, era chamado o morto, com esse nomão empolado. O Matias nunca tinha ouvido falar, achava que era nome tupi-guarani. O Lua achava que era russo. Pro Zózimo,só podia ser turco, "óbvio, tem um monte por aqui".
Mais tarde fui saber uma pá de coisa sobre ele, o morto. Era importante à bessa, ilustre e boa praça. Mandou um bando de gente pro Vietnan pra acabar com os comunistas, ajudou a derrubar nosso presidente porque este estava prejudicando o país, o nosso e o dele. Criou uma aliança para o progresso, o nosso e o dele.
Tudo a 9 mil quilômetros dali.
Além de ser uma pessoa simpática e muito interessante: foi capaz de interessar, seduzir, ninguém menos que a Marilin Monroe! - e realizar por nós o nosso sonho.
Era tão importante que depois o homenagearam com seu nome em ruas, avenidas, viadutos, colégios, no mundo inteiro. E no nosso país e na nossa cidade, que afinal faziam parte do mundo.
Até pessoas receberam o nome dele. O Anacleto deu nome a seu primeiro filho de Kenedi Fitizgerald de Jesus.
Grande homem!
Deteve os comunistas por nós, derrubou nosso governo por nós e promoveu uma aliança para o progresso por nós. E comeu a Marylin Monroe, por nós.
Mereceu, sim, sem dúvida,todo nosso luto e toda nossa consternação - mesmo a 9 mil quilômetros.
E.T.: uma coisa que eu nunca fiquei sabendo: aquele palavrão que meu pai soltou, se era pro assassino ou se era pro morto.
Publicado em 22/11/2025